O número de moradores em situação de rua na região Central de Betim tem chamado a atenção da população e, sobretudo de comerciantes, que relatam alguns impactos em seus negócios. O fenômeno, porém, segundo especialistas, acompanha uma tendência de cidades com dinamismo econômico como o de Betim, reconhecida com um dos principais polos industriais do país e que, por essa razão, atrai há décadas pessoas de diferentes localidades em busca de emprego e de melhores condições de vida. Inclusive, o município, conforme mostram dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, uma plataforma de direitos humanos vinculada ao Programa Polos de Cidadania da UFMG, está entre os 12 de Minas que reúnem 70% das pessoas em situação de rua.
O pedreiro João*, de 49 anos, é um exemplo de quem veio para Betim em busca de colocação profissional. Ele chegou da Bahia há um ano e quatro meses e, desde então, mora na rua. “Vim com o objetivo de trabalhar, mas, como não encontrei trabalho, acabei vindo parar na rua. Pedem experiência na carteira, e eu não tenho registro formal”, conta ele, que admite ser usuário de maconha há 30 anos, mas garante que o vício não atrapalha a sua rotina.
O perfil de João* é o mesmo da maioria do público assistido pelo Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centro Pop) de Betim. Segundo Warlei Oliveira Santos, coordenador do espaço, grande parte da população em situação de rua da cidade vem de fora e a maioria faz o uso abusivo de álcool e outras drogas. Ainda há os egressos do sistema prisional e os chamados trecheiros. “Realmente, grande parte vem em busca de emprego, mas, com a falta de qualificação profissional, eles não conseguem o que querem e acabam ficando pela cidade”, diz.
De acordo com Warlei, embora o município tenha legitimado, nos últimos anos, uma rede de atenção completa, com diversos serviços para ajudar essas pessoas, inclusive encaminhando para o trabalho, o problema do vício é um entrave. “A maiorça da população em situação de rua, infelizmente, está adoecida por conta, sobretudo do consumo de crack, que causa uma dependência muita rápida e vai ‘atrofiando’ essas pessoas.”, afirma, que completa: “Temos uma rede de atenção que oferece todo o suporte, mas a pessoa precisa querer se tratar, precisa desejar se livrar do vício ”.
Dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua mostram que Betim abriga hoje 274 pessoas vivendo nas ruas. Warlei elucida, porém, que esse número é o de pessoas inscritas no Cadastro Único (CADÚnico), mas que elas não necessariamente ficam na cidade.
“O número real atualmente é o de 159 pessoas, as quais já possuem a CADPop, que faz a contagem oficial da população em situação de rua e oferta carteirinhas para o acesso a equipamentos públicos – de saúde e de segurança, por exemplo – e às refeições dos restaurantes populares.
Segundo o coordenador do Centro Pop, o espaço, que funciona no Jardim Casa Branca, de segunda a sexta, das 7h às 17h, recebe uma média de 60 pessoas por dia, oferecendo serviços diversos, desde café da manhã a atendimentos e encaminhamentos para emissão de documentos. “Desde 2017, avançamos muito com ações para os moradores em situação de rua, como a intensificação das abordagens de rua, a oferta do Auxílio Habitacional e, agora, o Consultório na Rua”, cita.
Apesar das políticas sociais criadas e intensificadas nos últimos anos, comerciantes da região Central, que alegam sofrer impactos com a presença dos moradores em situação de rua perto de seus negócios, pedem uma solução definitiva para a questão. Eles citam problemas como sujeira nas calçadas, abordagens insistentes por dinheiro e uso de drogas.
“Esses moradores em situação de rua sempre entram na loja e abordam os clientes pedindo dinheiro. Já pedimos providências para que eles possam ir pra um lugar apropriado, mas a situação ainda permanece”, reclama Leonardo Silva, comerciante do Mercado Central de Betim. Thainá de Oliveira, do camelódrimo, se queixa de situações desconfortáveis: “Costumam fazer xixi e até defecar na porta dos estabelecimentos”.
Presidente da Associação dos Vendedores Ambulantes de Betim (Assovamb), Gabriel Átila relata que “alguns deles são agressivos, e isso, por vezes, afasta a clientela”.
O proprietário de um restaurante no bairro Angola também demonstra preocupação com atitudes violentas. “Uma vez, um deles entrou aqui e encheu uma sacola com refrigerantes. Minha esposa chamou a atenção, e ele jogou uma pedra nela”, lembra. Segundo ele, uma reunião entre representantes da prefeitura e comerciantes já foi realizada, mas todas as alternativas que teriam sido apresentadas podiam infringir os direitos da população em situação de rua.
Dono de um lava a jato que funciona há três anos no Centro de Betim, Matheus Coelho diz temer pela segurança dos clientes e de seus funcionários. Ele conta que seu estabelecimento é alvo de constantes furtos e estima que já tenha tido um prejuízo de R$ 5.000 com a ação das pessoas em situação de rua. “Já levaram fiação de energia elétrica e maquinário da minha loja. Acredito que é para vender pra usar droga. Uma vez achamos um morador que tinha furtado um botijão de gás daqui e, depois, descobrimos que ele revendeu na biqueira”, relata o comerciante.
Presidente da CDL Betim, José Barboza alerta para a urgência de soluções pra situação. “Essa é uma realidade desumana para os moradores em situação de rua e uma situação que traz impactos negativos para os lojistas. Precisamos unir forças e implementar políticas públicas pra enfrentar a situação”, afirma.
O presidente da Associação Comercial e Empresarial de Betim (ACE), Fabrício Freire, lembra que o município não é a única cidade no país a enfrentar essa situação e diz que é preciso considerar que “muitos marginais se disfarçam de pessoas em situação de rua para cometer crimes”. “Não temos relatos oficiais na entidade de problemas que essa população esteja gerando, mas estamos de portas abertas para ajudar os comerciantes”, frisa.
Aqueles que vivem nas ruas de Betim relatam uma realidade difícil e dolorosa, seja por conta do vício em drogas, seja pela violência doméstica que sofreram ou por desentendimentos familiares. Muitos deles afirmam que o maior desejo é encontrar uma saída definitiva do sofrimento.
Enquanto isso não ocorre, alguns confessam que só conseguem enfrentar o dia a dia com o uso de drogas. O “faz-tudo” Eurico, de 39 anos, que mora em uma rua do Santa Lúcia, junto com a companheira, afirma que os dois usam crack todos os dias. “A gente já tentou parar, mas não é fácil”, admite ele, que faz serviços diversos pra vizinhança. “Todo mundo aqui gosta de mim e me dá serviço”, conta ele, que vive há oito anos na rua e diz usar tudo que recebe por dia, cerca de R$ 70, para comprar a droga. Ele conta ainda que já foi procurado pelo Centro Pop. “Ofereceram me tirar daqui. Eu disse que eles poderiam levar minhas coisas, mas daqui eu não saio porque é o local do meu trabalho”, salienta ele, que sugere à prefeitura que, “com tantos terrenos públicos, use um deles para construir um galpão grande onde quem vive nessa situação possa dormir e tomar banho”.
Joana*, de 47 anos, é outra pessoa em situação de rua que há sete anos passa por uma história de dor. Ela mora em uma barraca no Chácaras: “Sofri por anos agressões do meu ex-companheiro. Eu e minha filha fomos forçadas a viver nas ruas. Não tenho apoio da família e sobrevivo catando recicláveis”, diz ela, que tenta, desde 1994, conseguir uma moradia popular. José, de 35 anos, que também mora no bairro Chácaras, é outro que admite ser dependente químico. “Tento sobreviver com reciclagem e peço comida às pessoas, já que não recebo nenhum auxílio. Mas espero uma ajuda e conseguir tratamento”.
Em um cenário de desamparo, a solidariedade se mostra crucial pra salvar vidas e transformar, nem que seja um pouco, o dia a dia da população de rua. Por isso, iniciativas como a da Paróquia São Francisco de Assis, do Santuário Nossa Senhora do Carmo, da Igreja Evangélica Assembleia de Deus Missão e do GT Pop Rua do Centro de Defesa dos Direitos Humanos e da Natureza, entre várias outras da cidade, são essenciais.
Na paróquia São Francisco de Assis, voluntários, apoiados pela Pastoral do Povo da Rua, servem, nas manhãs de quarta, um café à população em situação de rua. Aos domingos, em frente à Igrejinha do Rosário, há a oferta de marmitas, água e doces para essa população.
Nos sábados, o GT Pop Rua entrega um café da manhã e realiza uma roda de conversas embaixo do Viaduto Jacintão ou na pista de skate que fica perto do Ginásio Poliesportivo Divino Braga.
No Santuário Nossa Senhora do Carmo, um Banho de Esperança – como é chamado o projeto promovido por voluntários do templo – é oferecido à população em situação de rua, proporcionando higiene pessoal, doação de roupas, calçados, alimentação e escuta fraterna para eles. A ação conta com um carro adaptado, transformado em banheiro itinerante.
Já a Igreja Assembleia de Deus Missão, há 13 anos, além de evangelizar, doar roupas e alimentos aos moradores em situação de rua, promove o Recuperando Vidas, que os auxilia na luta contra a dependência química.
Algumas ações para tentar amenizar os desafios enfrentados na cidade relacionados às pessoas em situação de rua são cobradas pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos e da Natureza (CDDHN) de Betim.
Entre elas estão a abertura de outra casa de passagem em Betim e a retomada de reuniões do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua, criado pelo Executivo por meio do Decreto Municipal nº 41.572, em 2019.
Formado por representantes de secretarias do governo, da sociedade civil e de entidades, o comitê tem, entre outras atribuições, o dever de propor e de implementar estratégias para melhorar a política existente, elaborar planos de ação e promover encontros pra discussão sobre a situação da população que vive nas ruas. “O comitê é importante para reunir os diversos atores envolvidos e buscar melhorias para essas pessoas”, pontua o membro da Pastoral Nacional do Povo de Rua em Betim, Camilo Campos.
Com relação à abertura de uma nova casa de passagem, segundo o coordenador do Centro Pop, Warlei Oliveira Santos, Betim está elaborando um projeto para ampliar o número de acomodações da casa de passagem que funciona hoje na cidade.
A Polícia Militar, por meio do 33º Batalhão, pediu integração com a prefeitura e a sociedade civil nas ações voltadas às pessoas em situação de rua. “A solução exige uma atuação conjunta, que inclua ações de segurança pública e de assistência social”, diz ao ressaltar que “a situação de rua por si só não é motivo para suspeita criminal”.
Coordenador do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da UFMG, o professor André Luiz Freitas Dias concorda. Para ele, a efetividade das ações depende de integração: “O problema da exclusão é de responsabilidade social de todos”, diz.
*Nomes fictícios pra preservar as fontes.
Com Nelson Batista e Vitor Rocha