Aos 15 anos, ainda adolescente, o jornalista Bernardo Cançado teve uma noite de insônia. Lá pelas duas da madrugada ligou o rádio e estava tocando alguns versos de “Errare Humanum Est”, terceira música do disco “A Tábua de Esmeralda”, de Jorge Ben (sem o “Jor” ainda), álbum que completa 50 anos neste maio de 2024. “Aquilo bateu na minha cabeça igual uma bomba! Essa música abriu o meu senso de percepção do mundo”, relembra ele. “Na época, eu não tinha conseguido entender de primeira o que o Jorge estava falando. Só décadas depois, já adulto, pegando o disco para ouvir, que fui entender e enxergar outras coisas que ele quis dizer nessa mesma letra. Recentemente, ouvi de novo e tive uma nova visão”, conta ele, atualmente com 37 anos, casado - e, até o momento, sem sofrer por amor. “Esse disco mudou minha vida e possivelmente nada disso aconteceria se não fosse uma noite de insônia, naquele dia, por causa do amor perdido na adolescência”, relembra, sobre o primeiro contato com a obra.
“Errare Humanum Est” também é a melodia que sobressai quando o músico mineiro Samuel Rosa fala sobre o mesmo álbum. “Ela tem uma coisa hipnótica, que eu adoro, com a mesma batida, do início ao fim da música, enquanto Jorge conta uma história de todo o misticismo que existia, do que ele havia estudado e a grande dúvida da existência humana do universo”, diz ele, sem esconder a vontade de regravar essa canção. Ele relembra que quando o Skank surgiu, nos anos 1980, teve Jorge Ben Jor como um padrinho e “A Tábua de Esmeralda” como o álbum de cabeceira que influenciou musicalmente a banda, que acabou em 2023.
Estão chegando?
O legado do icônico disco, meio século depois, reverbera até hoje. Mudou a carreira de Jorge Ben Jor, que desdobrou-se aos estudos de Teologia e Filosofia Medieval quando foi seminarista por dois anos, no Seminário São José, no Estácio, no Rio de Janeiro dos anos 1950, antes de conceber a obra musical em 1974. Por lá, leu textos originais de Tomás de Aquino, virou fã do francês Nicolas Flamel (1330-1418), um dos alquimistas mais importantes da história, homenageado na faixa “O Namorado da Viúva". Também contribuiu para a cultura brasileira e para os ouvidos de quem cultua até os dias atuais essa obra musical que envolve a história dos alquimistas, misticismo e letras pautadas na temática 'Tábua de Esmeralda', redigida por Hermes Trismegisto no século XV, considerado um dos maiores manifestos que deram origem às noções de alquimia.
“Os Alquimistas estão Chegando” não só é a primeira música do disco, cuja letra descreve o processo da alquimia em tentar transformar metais comuns em ouro, mas também aparece em diversas referências na capa do disco, que traz imagens icônicas da tábua de esmeralda juntamente à Nicolas Flamel. “Os alquimistas usavam símbolos para dar os seus recados. Nicolas Flamel era conhecido por usar principalmente a linguagem aparentemente religiosa para falar dos seus postulados sem ser incomodado pela Inquisição”, contextualiza o alquimista Joel Aleixo sobre o período político-religioso dos séculos XII ao XVIII, que condenava as teorias contrárias aos dogmas do cristianismo. “Os alquimistas conheciam a arquitetura sagrada e a composição de sons em frequências que poderiam ajudar na recuperação do corpo e no despertar de uma maior consciência espiritual”, explica ele, musicalmente falando.
Esse tema até então inédito a ser explorado musicalmente falando, foi uma fonte justificavelmente bebível para o próprio Jorge Ben Jor, de acordo com Andityas Matos, professor e doutor da Faculdade de Direito da UFMG, autor do livro "Contra/políticas da alquimia", lançado em 2023. “É importante esclarecer que alquimia não é uma ciência e nunca quis ser. Ela, na verdade, entrou em choque com a ciência. É uma forma alternativa de ver o mundo como um todo; um conhecimento autônomo que está muito mais próximo, por exemplo, das artes e da filosofia, que tenta nos fazer compreender uma coisa fundamental no mundo contemporâneo de hoje, de que não existe identidade fixa, que não existe estabilidade nas coisas e que tudo está mudando, tudo está se transformando. Ela envolve, inclusive, o conhecimento em várias artes. E a música”, exemplifica.
O conjunto de simbolismos transformou o disco em um marco na história da música no país, cultuado até hoje, e também eleito, em 2007, como sexto melhor da história do Brasil em uma lista curada pela revista “Rolling Stone”, além de ser citado frequentemente em tantas outras listas. “Esse disco ('A Tábua de Esmeralda') é um dos mais emblemáticos e mais importantes da música. Isso em uma década também que, talvez, tenha sido a mais frutífera para a MPB, que flertava com outros gêneros como rock e jazz, para se tornar um grande fenômeno pop”, avalia o músico Samuel Rosa. Com o Skank, ele fez uma turnê especial ao lado de Jorge Ben Jor e Céu, em 2017, onde incluiu duas faixas desse disco no repertório: “Menina Mulher da Pele Preta” e “O Homem da Gravata Florida”, música “que eu insisti para tocá-la no show e meu querido mestre, Jorge Ben Jor, ainda me presenteou com uma gravata florida a qual eu guardo a sete chaves”, relembra ele, considerando a relação com o músico como um dos trunfos da sua carreira.
Como citou Samuel Rosa, no momento do lançamento do disco, nos anos 1970, o Brasil passava pelo pior momento da repressão da ditadura militar. A obra veio como um certo paradoxo. “De um lado temos o retrocesso, o conservadorismo extremo, e, do outro, a chegada da contracultura libertária, colorida, polivalente, variada, que reelabora uma série de coisas que teriam sido desprezadas. A contracultura traz tudo isso de volta, a voga do misticismo, a libertação do corpo e da reivindicação da liberdade individual”, contextualiza o pesquisador e crítico musical Paulo da Costa e Silva, que publicou, pela editora Cobogó, um número sobre “A Tábua de Esmeralda” para a coleção “O Livro do Disco”. “O disco do Jorge Ben vem como uma resposta de afronta e negação do que estava acontecendo no plano político e social do Brasil”, disse.
Herança
Por ser um disco que marcou época, muitos ouvintes foram influenciados, na carreira e na vida pelas canções originais. Para Alexandre Biciati, editor do site Phono, a obra sempre foi cultuada e estudada por entendidos em música. “Por isso mesmo é raro de ser encontrado em prensagem original em vinil, o que inflaciona o preço dos discos ano após ano. Mesmo após o relançamento, é um disco procurado à luz de velas por colecionadores, fãs e entusiastas. O anúncio de um show do disco só reforça sua relevância e procura. Um vinil de época pode chegar a algumas centenas de reais hoje em dia”, avalia.
Influência segue forte meio século depois
O músico Samuel Rosa celebra o fato de a nova geração conhecer e ouvir o disco, 50 anos após o seu lançamento. “Hoje eu dou risada e acho bom quando eu vejo as novas gerações citando Jorge Ben Jor, ouvindo esse disco. Eles são amantes da boa música de última hora e estão redescobrindo a riqueza da música popular brasileira”, avalia.
Neste ano, várias gerações, inclusive a citada pelo músico, puderam acompanhar durante o Carnaval de Belo Horizonte o cortejo do bloco Chama o Síndico, que antecipou em fevereiro as celebrações dos 50 anos do álbum fazendo um desfile especialmente dedicado a ele e toda a sua alquimia musical.
“Essa obra me abriu para um universo musical totalmente novo para mim. Fiquei maravilhado com a sonoridade, a ruptura com a forma de escrever letra, sem tanto compromisso com a rima, sem arranjos psicodélicos. É um disco tão histórico e aparece em qualquer lista que se preze que homenageia a música brasileira. É uma obra-prima”, conta Matheus Rocha, co-idealizador do Chama o Síndico.