coluna-laura-medioli-2708
Foto: Fernando Fiuza
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Foto: Fernando Fiuza
Numa tarde de verão italiano, folheava junto à minha sogra um antigo álbum de fotografias. Entre tantas imagens, uma mocinha bonita, no esplendor de seus 17 anos.
–Sono io! – me disse sorrindo. Retribuí o sorriso, numa espécie de cumplicidade feminina, como se aquela fotografia nos transportasse ao passado, ao frescor de sua juventude, idade de descobertas e platônicos amores.
Até que um dia, para essa menina, os sonhos tomaram outros rumos. Era o ano de 1940 quando sua vida, seu país e sua história, de repente, se viram invadidos pela guerra.
Lembrava-se de quando, junto com os amigos, escutou pelo rádio a voz de Mussolini. Ficaram emocionados, não surpresos, porque, de certa forma, já aguardavam por aquilo. Ao regressar à casa, encontrou a tristeza no rosto materno e a inquietante preocupação no silêncio do pai.
E foi numa manhã de outono que viu o irmão partir, o único homem entre quatro irmãs. Um garoto de 20 anos, tendo que combater no front entre Itália e França, depois na Albânia. A angústia do pai era visível, seu único filho levado pelo mesmo destino que tivera 24 anos antes, quando, também jovem, fora convocado para a Primeira Guerra Mundial. Era a história se repetindo.
Em silêncio, fiquei escutando o desenrolar de suas vidas, marcadas por sofrimentos e ausências. Minha sogra me falava de sua mãe, Emma. Por anos presenciou-a à espera do filho, olhando para a estrada na expectativa de vê-lo voltar. Lembrava-se de seus choros velados e da silenciosa agonia do pai. Do barulho das bombas, seguido pela claridade funesta. Dos horários para fechar janelas e apagar as luzes. Recordava-se da amiga querida, que ainda vivia, sem as duas pernas. E também dos amigos que, procurando leveza em meio à dureza, iam a sua casa para ouvir no gramofone os três únicos discos de vinil. Lembrava-se, enfim, do primo falecido... O medo era constante, e viviam o dia como se fosse o último.
Faltavam recursos, alimentos, sorrisos... Menos a poderosa força das orações.
Do irmão não tinham notícias. Vivo? Morto? Preso? Não se sabia.
Recordava-se da mulher de roupas extravagantes, uma adivinha que, por meio da quiromancia, trouxe-lhe um pouco de esperança: “Tuo fratello è vivo!”, repetia com insistência. Até que numa manhã, após seis meses sem notícias, receberam uma carta. A quiromante estava certa.
Na Albânia, fora feito prisioneiro e deportado à Alemanha para um campo de concentração. De dia, trabalhos forçados numa fábrica de armamentos, depois o sofrimento e os pesadelos nas noites maldormidas. Quatro anos já haviam se passado, quatro dos cinco em que ficaria longe dos seus.
Até que no ano de 1945, finalmente, foi libertado pelos norte-americanos. Voltou doente, magro, sujo, com piolhos na cabeça e uma profunda tristeza na alma. O pai, ao vê-lo, compreendeu, pois também passara pela experiência, 24 anos antes.
A surpresa do regresso foi enorme, chegou no meio da noite, acordando a família. Festa! Lágrimas! Emoções mescladas de alívio e contentamento.
Ao entrar e não ver a irmã caçula, começou a chorar. Traumatizado com tantas mortes, receou que ela, na época com 6 anos, também tivesse morrido. Mas a garotinha, indiferente a tudo, apenas dormia.
Assim como o seu pai, evitava falar sobre a guerra, uma dor que tentaria esquecer. Só muito tempo depois, a família tomou conhecimento de sua fuga e do risco que correra de ser fuzilado. Denunciado como antinazista, por pouco não perdeu a vida. Acolhido por um camponês, por duas semanas manteve-se escondido numa pocilga, alimentando-se da mesma ração oferecida aos porcos, dividindo com eles a água e o espaço para dormir.
Eu quis saber mais, a história me fascinava. Contava com a incrível lucidez de minha sogra, que, em seus 90 anos, muito tinha a contar. Perguntei sobre seu pai, Giovanni Ravasine. Com 25 anos, fora convocado à Primeira Guerra.
Recém-casado, partiu com o Exército para a conquista de Trieste, deixando a esposa, a jovem Emma, com uma filha no ventre. Filha que só veio a conhecer dois anos depois, durante uma única semana em que lhe fora permitido estar com a família. A menina, assustada, o temia e não poderia compreender que aquele estranho, magro e sofrido, fosse o seu pai. Para ela, ele não passava de uma fotografia...
Após três anos em combate, finalmente regressou à casa. Passou fome, frio, medo... E, por ironia do destino, 24 anos depois, viu o filho seguindo pelo mesmo caminho – intimado a “servir” seu país.
Conversávamos também sobre meu sogro, Riccardo Medioli, falecido em 1982. Assim como o cunhado, combateu na Segunda Guerra, passando longos invernos nas montanhas da Albânia. Ao regressar, como os outros, preferiu o silêncio. Sobre a guerra dizia pouco e nunca mais quis voltar aos locais onde estivera.
Pensei na fotografia de minha sogra, que poderia ter sido um marco entre duas épocas: a primeira, de uma juventude feliz e despreocupada, e, depois, a outra, de medos, dores e tristezas... Quando se perderam sorrisos e esperanças...
Guerras deixam marcas, gerações feridas, traumas e lições. Mas, acima de tudo, o desejo incontido de se manter a paz. Paz que desejamos aos ucranianos nesta guerra absurda, que no último dia 24 completou seis meses.