Nosso anjo

Minha mãe sempre foi oceano em tudo: na generosidade, na ternura, na humildade...

Por Laura Medioli

Publicado em 13 de maio de 2023 | 03:00

 
 
Ilustração da coluna de Laura Medioli que mostra sua mãe Ilustração da coluna de Laura Medioli que mostra sua mãe Foto: Hélvio
Laura Medioli
Colunista de Opinião
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Minha mãe durante a pandemia estava com 85 anos. Na época eu era a única dos filhos com permissão de entrar na sua casa, resolver os problemas domésticos, ver filmes, falar de política (que ela adora) e de assuntos triviais. Pelo FaceTime e WhatsApp, conversava com o resto da família.

No dia de seu aniversário, a cada presente ou mensagem recebida, ela começava a chorar. Sempre foi assim, basta uma gota de emoção para aquilo se transformar num oceano. E minha mãe sempre foi oceano em tudo: na generosidade, na ternura, na humildade...

“Vó, você já ouviu falar nos trabalhadores de luz? Outro dia estava lendo sobre isso e me lembrei de você!”, escreveu minha sobrinha Júlia. “Os trabalhadores de luz nasceram para compartilhar a sua luz e trazer mudanças para o planeta... São pessoas que não ressoam com o mundo moderno, muitas vezes se sentem como almas antigas que vieram aqui, mais uma vez, para ensinar, amar incondicionalmente e ajudar o próximo. Vó, você é abundância de amor, riso fácil, sensibilidade, altruísmo e delicadeza. Por onde passa, deixa a sua marca no coração das pessoas”. Em poucas palavras, minha sobrinha conseguiu traduzi-la.

Descubro que, à medida que os anos passam, vamos nos tornando mães de nossas mães: a preocupação com o tombo no tapete, com o horário dos medicamentos, o agasalho nas noites frias, a alimentação saudável... Os telefonemas diários, para saber se está tudo bem e ouvir pela vigésima vez a mesma história, casos que se repetem no decorrer do dia, quando a memória oscila.

Generosa, ela sempre se preocupou com os mais humildes. Foi pelas mãos de minha mãe que, pela primeira vez, ainda criança, adentrei os becos de uma favela. Lembro-me dos sábados em que ela saía, dia em que distribuía sopão aos mendigos.

Também me lembro das visitas que fazia às casas de acolhimento aos soropositivos, numa época em que a Aids era quase um tabu. Lembro-me de quando os barracos de um aglomerado desmoronaram com a chuva, e ela, mesmo com o avançar da idade, quis me acompanhar.

Só mesmo o milagre da bondade para fazê-la pular uma cerca, em meio a lama e tragédias.

Lembro-me da nossa casa sempre cheia nos finais de semana, com mais de 20 pessoas para o almoço, e ela não se importava, estrogonofe com batata-palha era o prato de domingo. Meus amigos, amigos dos meus irmãos, amigos dos amigos, minha casa era uma festa, e ela, o ponto agregador.

Também me lembro da final da Taça Libertadores, em que da sua casa, na Pampulha, ouvia-se o grito da torcida no Mineirão. Quase meia-noite, e ela na varanda, com as mãos para o alto, gritando a plenos pulmões: “Eu acredito! Eu acredito!”, quase matando de susto a enfermeira de meu pai.

“Dona Glorinha!!! O que é isso?” E ela respondeu: “É a força da palavra, ela tem uma energia que emana...” E continuou a gritar. “Não sabia que a senhora gostava de futebol!”, comentou a enfermeira, ainda com cara de espanto. E ela respondeu: “Não ligo, não, mas a Laurinha está lá, no Mineirão, gritando com a torcida, aí eu grito daqui”. E, com as mãos para o alto, continuou seu repertório.

Lembro-me de nossa casa sempre cheia, quase um “asilo” com seus antigos funcionários, que entravam, mas nunca saíam: o motorista Arthur, conosco por mais de 30 anos; a cozinheira Preta, com seu ombro amigo, 40 anos ao lado de minha mãe; o jardineiro Pedro, mais de 30 anos cuidando de nosso jardim; a querida Vera, que chegou mocinha e saiu com quase 70.

A estimada Chica, sempre próxima, que no dia do seu aniversário me enviou a seguinte mensagem gravada: “Laurinha, já mandei um WhatsApp pra ela, essa pessoa maravilhosa, esse anjo que Deus colocou no mundo pra poder ajudar nós. Que mulher maravilhosa! Eu amo ela demais!” completou, com a voz embargada.

E assim é minha mãe! Delicadeza pura! Alma leve, mantém em sua varanda um altarzinho particular, onde ficam as imagens de Nossa Senhora e de são Francisco, o Evangelho aberto e uma vela de sete dias. Para ela não importa o credo, com tanta fé, sua religião é Deus!

Querida pelos congadeiros, ela os acompanha há mais de 30 anos, ajudando nas festas, se emocionando com a entrada do cortejo na capela Nossa Senhora do Rosário, com seus cantos e tambores, que desde sempre fez questão de nos mostrar.

Adorada pelos mais humildes, pelos mais esquecidos, pelos que sofrem preconceitos. Adorada pelos filhos, pelos amigos, pelos passarinhos que há anos alimenta da sua varanda... Às vezes desconfio que minha mãe é um anjo!