Opinião

Quando não havia maldade

Escrevo este texto em homenagem a um primo, Giovanni, e a um amigo, Diego, que deixaram saudade neste planeta

Por Vittorio Medioli

Publicado em 08 de outubro de 2023 | 03:00

 
 
Vittorio Medioli
Colunista de Opinião
Colunista de Opinião
Vittorio Medioli Vittorio Medioli
aspas
normal

Era uma época em que as preocupações não passavam de uma vitória no jogo que se repetia, a cada final de tarde, no pátio da fazenda de um primo de meu pai próximo da minha casa. Diga-se casa de campo em Vicofertile, zona rural da província de Parma, onde nasci. Parma é anterior a Roma, cidade etrusca, e antes disso povoada por gente que morava em palafitas, pois alguns milhares de anos atrás as águas do mar Adriático inundavam parte daquela que hoje é a planície Padana, no Norte da Itália. A menos de um quilômetro de casa, durante uma escavação, apareceu um sítio arqueológico de 5000 a.C., mostrando vestígios de uma civilização bem primitiva, que cultuava seus deuses.

Naquele lençol de terras, minha família e outras escreveram longos capítulos na agricultura e produção de alimentos. As famílias Farnese, Rossi e Pallavicino, entre os séculos XII e XVII, deixaram Parma, uma das cidades mais prósperas e bonitas do Norte da Itália, com inúmeras igrejas, museus, teatros, palácios, bibliotecas, castelos refinados e vilas de rara beleza.

Para chegarmos ao campinho coberto por uma grama cheirosa, saíamos de bicicleta para fazer um trajeto de meio quilômetro, que era percorrido por mim e meu irmão maior, sempre na forma de corrida e desafio. Não raras eram as quedas no fosso e os joelhos esfolados no cascalho que cobria a via.

Mas isso era parte da paisagem, passava-se água fresca que era bombeada do poço da fazenda, e bola para a frente. Colocar a bola no gol era um prazer indescritível, assim como voar para pegar um chute certeiro dentro das traves.

Ainda dava tempo para voltar em casa e acompanhar meu pai, que gostava de passear com seus cães. Sempre passávamos por campos até chegar a um canal onde uma queda d’água formava uma piscina, e aí pulávamos incansavelmente, com e sem cachorros acompanhando as acrobacias. Passávamos também um sabonete e voltávamos antes do escurecer, cheirando a alfazema barata, para devorar o jantar preparado por minha mãe.

Este era sempre uma delícia, com comidas frescas da horta, ovos caipiras, pastéis de berinjela, macarrão caseiro curtido com tomate e manjericão e tortas com geleias de ameixa, cereja ou pera, todas produzidas em casa, assim como vinhos, licores e conservas.

A produção caseira seguia religiosamente as recomendações inspiradas nas fases planetárias e lunares reveladas pelo “Almanaque de Santo Antônio”, que meu pai comprava no início de cada ano para pendurar na cozinha e servir de “bíblia” para os cuidados e preparos de comidas.

Lembro que, uma vez, o vinho foi engarrafado numa fase lunar não propícia e que, depois de alguns dias na cantina, em plena noite de lua cheia, quase todas as garrafas expulsaram as rolhas, num pipocar de estouros. Meu pai ficou furioso, mas não tinha a quem culpar por ter sido ele o responsável pelo descuido, que desperdiçou o vinho “moscato”, tão cuidadosamente produzido.

Havia ainda, depois do jantar, um trambolho de tevê, da marca Admiral, que mostrava seriados americanos, como “Rin-Tin-Tin”, “Zorro” e “Perry Mason”, este um advogado, que em meia hora transformava uma causa perdida em vitória espetacular.

O dia durava uma eternidade, e uma semana era repleta de acontecimentos marcantes, de alegrias, brincadeiras, atividades, desafios, descobrimentos.

Escrevo este texto em homenagem a um primo, Giovanni, e a um amigo, Diego, que deixaram saudade neste planeta. Com os dois e meus irmãos e primas, vivi num mundo adorável, sem maldades, marcado por experiências e momentos lindos. Nunca esquecerei.