OPINIÃO

Ouro e lama do Brasil

Coluna do Vittorio Medioli - Ouro e lama do Brasil

Por Vittorio Medioli

Publicado em 16 de abril de 2023 | 03:00

 
 
Vittorio Medioli
Colunista de Opinião
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Era o ano de 2009, e o Sada Vôlei estava a um passo de se associar ao Cruzeiro, gigante do futebol. Depois de três anos de existência, já escalava os vértices da Superliga Masculina brasileira. Eu, como presidente do clube naquela época (hoje não exerço qualquer cargo ou função), decidi contratar para a temporada 2009/2010 alguns atletas consagrados no cenário internacional e outros jovens promissores. 

O time já contava, na vaga de oposto, com um atleta da seleção brasileira. Mas, impressionado com um jovem de 21 anos, que atuava como reserva num pequeno clube do interior de São Paulo, um tal de Wallace de Souza, acabei decidindo recrutá-lo. A Wallace se atribuíam porte físico insuficiente, falta de experiência e outros “defeitos” para cobrir a função de definidor de jogadas, de atacante puro. 

Acabou, assim, chegando a BH com um salário bem baixo e foi morar em Sabará, de favor, na casa de uma parente. Vinha de ônibus para os treinamentos até o clube financiar para ele um carro Palio Weekend. 

Muito esforçado, de poucas palavras, era o primeiro a chegar e o último a sair dos treinos. Em três meses, conseguiu sair do banco de reservas e se firmar como titular. Nesse meio-tempo, retirando a Weekend da garagem em Sabará, esqueceu-se de acionar o freio de mão, e, ladeira abaixo, o carro acabou. Depois disso, Wallace só conheceu sucessos, recordes nas quadras e no clube “Campeão de Tudo”. Colecionou taças e até título mundial. 

Na seleção brasileira, alcançou o pódio olímpico. Em Londres, medalha de prata, marcando na final, contra a Rússia, 29 pontos (ninguém tinha atingido essa marca numa final olímpica). Em seguida, no Rio, em 2016, levou a medalha de ouro, sendo o maior pontuador da seleção brasileira e do torneio. Antes de completar 30 anos, Wallace já tinha o nome esculpido indelevelmente na história do vôlei mundial com títulos que poucos alcançaram. 

Tivesse nascido na monárquica Inglaterra, receberia até uma comenda e entraria entre as personalidades “a serem lembradas por méritos nacionais”. Um exemplo para jovens, um orgulho para a nação.  No Brasil, até por sua origem, sofreu discriminação racial vergonhosa sem que os culpados fossem punidos. 

Wallace é do tipo calado. Dentro do clube cada um tem sua religião, partido, preferência que a Constituição garante a todos.

Wallace devota à família e aos filhos o melhor de si e tem hobbies pessoais. Sem vícios, regradíssimo, nunca teve problemas de gordura, de peso, de infortúnios. Mesmo nas férias se exercita, se cuida. Ele é o filho que qualquer mãe gostaria de ter. Alegre, cortês, atencioso, cuidadoso, e, ainda, sua trajetória excepcional daria orgulho a qualquer familiar. 

Ele gosta de dirigir carros velozes Brasil afora, sempre que pode. Mais recentemente, a paixão fez dele um assíduo praticante de tiro ao alvo. A exuberância inspira Wallace a praticar pilotagem na pista de Curvelo nos fins de semana ou passar momentos em academia de tiro ao alvo. 

Podem ser hobbies questionáveis, mas legítimos. O tiro ao alvo é uma modalidade olímpica. 

Ele está inserido em grupo de praticantes, e nesse ambiente temático a palavra “tiro” tem vários significados, que fora não tem. Entre atletas de futebol, o “cartão vermelho” é usado como expressão metafórica e jocosa para se manifestar positiva ou negativamente. Já entre atiradores, dar ou não dar tiro é metaforicamente um sinal de agrado ou desagrado, aprovação ou desaprovação. 

Pois bem, Wallace, imprudentemente, compartilhou uma enquete de atiradores fora do grupo temático, no qual a “brincadeira estava correndo”. Não se apercebeu da possibilidade de ser interpretado literalmente. O bombardeio de redes sociais e da mídia o atropelou, num clima já contaminado de discussões violentas. 

Wallace, o bom moço, o herói nacional, passou a ser confundido com um perverso conspirador contra a vida do presidente. Isso não é bem a verdade, qualquer um, mesmo com QI rasteiro, enxerga que a encrenca de Wallace serve mais ao interesse de quem quer se qualificar como defensor “confiável” do “rei”, ou talvez se habilitar para outros voos mais importantes. 

Fosse apenas por justiça, ou se se tratasse de um atleta pouco conhecido, o episódio não teria se sustentado e sequer teria sido noticiado. O caso de um medalhista olímpico, mundialmente famoso, se transformou num trampolim de pobre sensacionalismo e de figuras à procura de visibilidade. A história está cheia de casos como esse. Sair da vala comum para os noticiários mundiais. 

Parece que a Advocacia Geral da União analisou o caso e se deu conta de não existir a possibilidade de indiciar quem promoveu a própria enquete. Se não há culpa do autor, como pode ter quem compartilhou? Mas se deu o trabalho de despachar o caso ao Comitê Olímpico Brasileiro  para julgamento no Comitê de Ética. Ora, é uma atitude sem precedente algum, que se configura no reconhecimento de não imputabilidade de crime para quem fez a enquete, quanto mais para quem a compartilhou, ou seja, milhares de pessoas, entre as quais, Wallace. A culpa de Wallace não é a enquete, mas ser personalidade mundialmente reconhecida? Todos os outros foram considerados inocentes, menos ele, campeão olímpico! 

O COB, além de alheio ao caso e inabilitado a suspender um atleta de torneio organizado pela CBV, aplicou ao herói nacional 30 dias de suspensão. Não satisfeito, depois da decisão irrecorrível do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que descartou qualquer possibilidade de infração do atleta no âmbito profissional, o COB aumentou o castigo para 60 dias, e, irresignado, ampliou para 90 dias. Wallace se transformou num saco indefeso de pancadas? 

A Confederação Brasileira de Vôlei, que depende de verbas do Banco do Brasil (União), ciente de que o COB é um ente sem prerrogativas para dar penalidade ao atleta nesse caso, e, ainda, contrariando o STJD (sem caixa e verbas), passou a adiar o jogo em que Wallace ganharia o direito de participar. 

Mas tudo poderia ser resolvido com uma simples palavra do “rei”, supostamente atingido pela metáfora do tiro. Poderia dar um basta ao caso, com um perdão e um aperto de mão de “estadista”.  

Até porque ele encontrou argumento e coragem para defender um Cesare Battisti, italiano condenado por quatro homicídios no país dele, agraciado com asilo político. Wallace, por um pecado venial, mesmo medalhista olímpico que ao Brasil deu vitórias, alegrias e admiração internacional, continua impedido de trabalhar. 

Esse episódio passará para a história, entre os casos absurdos num país que aspira – e ainda não merece – a ser considerado realmente democrático e civilizado.