Vittorio Medioli

Rastros de vida

O sobrenome Medioli deriva de “mediolanum – do latim, “cidade de Milano; o “primeiro Medioli, de nome Domenico Medioli, na paróquia de Vicofertile, data do ano de 1609

Por Vittorio Medioli

Publicado em 30 de julho de 2023 | 03:00

 
 
Vittorio Medioli
Colunista de Opinião
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Não havia televisão quando eu era criança. No início da década de 50, as férias escolares na Itália, onde nasci, se davam de julho até o final de setembro. Para mim, era destacadamente a melhor época do ano, aguardada ao longo dos restantes meses que pareciam não acabar nunca. Eu fazia uma tabela e riscava os meses, as semanas e os dias com um “X” até chegar o fatídico mês de junho. A euforia crescia ao longo de maio, e os projetos de atividades e brincadeiras eram cada vez mais repassados nos detalhes.

As férias se davam na estação de verão (no hemisfério norte da Terra), de calor, de janela aberta, de mergulhos em córregos e nas raras piscinas públicas abarrotadas de gente.  

Dormia-se sem cobertor. A claridade dos dias durava além das 21h, e as noites eram tépidas, cheias de perfumes e vagalumes, abelhas, besouros e insetos – que hoje não existem mais.

Em agosto, a noite de São Lourenço era marcada a cada ano pelo fenômeno de chuva de meteoritos, que riscava o céu – e acontece apenas no hemisfério norte. Por ser tão esperada, nós ficávamos até a meia-noite no jardim, contando os riscos luminosos que cortavam a escuridão estrelada.

Após o jantar, as horas eram preenchidas de conversas, de leitura de contos infantis declamados por meu pai. Ainda, num ritual prazeroso, brincadeiras, bingos, jogos de esconde-esconde.

Nós, crianças, ficávamos alvoroçadas com o brinquedo que meu pai dizia ter recebido do pai dele. Uma única vez no ano o tirava de cima de um armário. Da caixinha, saía um barquinho milagroso de lata que, armado de azeite e pavio de corda, produzia o calor necessário para fazer vibrar uma membrana que o impulsionava na bacia cheia de água, soltando um barulhinho metálico de “pot-pot”. Encerrado o espetáculo, era preciso aguardar 12 meses para a reprise, sempre no começo de setembro.

O sítio já tinha sido residência de meu bisavô Vincenzo e de meu avô Francesco, bem próximo do moinho de trigo da família. Eu nasci órfão de avós por parte de pai, mas me parecia ter convivido com eles por longos anos, de tanto que suas memórias eram cultuadas por todos. Suas fotos abundavam em molduras expostas nas paredes de casa. No sótão, ainda, muitas bugigangas, roupas, bengalas, troféus, chapéus e baús cheios para testemunhá-los.

Durante os almoços e jantares, meu pai lembrava (e repetia com indisfarçado prazer e sem cansar) episódios engraçados. Quase sempre entre risadas. Não havia lembranças tristes dos meus antepassados, os pecados tinham sido banidos. Entretanto, meus avós parecem mesmo terem sido pessoas boas, generosas, que viveram sem mágoas e confrontos.

A moagem de trigos era a atividade deles, sempre em grandes moinhos acionados pelas águas correntes de um canal de época imemorial. Também eles tinham fornos para produção de pães, biscoitos e, no Natal, o irrenunciável panetone – esta tradição, pelo menos, que existe desde o ano de 1609, data que registra o “primeiro Medioli”, de nome Domenico Medioli, na paróquia de Vicofertile, aldeia camponesa cujas origens se perdem na idade média. De solo excepcionalmente produtivo (como o próprio nome lembra: “vico”, que é “vilarejo”; e “fertile”, “fértil”), declara, sem temor, a abundância das fazendas da região.

O sobrenome Medioli deriva de “mediolanum” – do latim, “cidade de Milano”. Suponha-se que alguém chegou ao vilarejo em épocas distantes, possivelmente em torno do ano 1000, pois a capela da paróquia data desta época, século X depois de Cristo.
A casa de meu bisavô, inaugurada no ano de 1908, entretanto, tem vestígios muito mais antigos. Abaixo da cantina, por uma escadinha, se acessa uma sala de abóbada da planta da casa, provavelmente construída séculos antes e afundada pela estratificação dos sedimentos depositados naturalmente.  

Um livro seria necessário para descrever histórias de um passado que em parte já se perdeu, mas está fixado em pequenos detalhes e vestígios, certamente na vidência de alguns e na saudade de poucos, assim como sinto agora, revendo o que fui e não voltarei mais a ser.