OPINIÃO

Intrigas e matérias-primas

As matérias-primas influenciaram toda a história da humanidade; O Brasil nasceu a partir deste interesse

Por Vittorio Medioli

Publicado em 19 de maio de 2024 | 14:19

 
 
Durante séculos, as matérias-primas estimularam o progresso, mas também conflitos Durante séculos, as matérias-primas estimularam o progresso, mas também conflitos Foto: Pixabay
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Um dia, o falecido Umberto Eco falou de santo Agostinho, da ribâ (usura), de são Bernardo, de são Gregório, das indulgências dos Fuggers, do banco Médici, que fez fortuna com o dinheiro do papa, dos comerciantes que compravam especiarias por dez ducados no Oriente e as vendiam por 300 florins na Europa, colocando em risco a própria vida.  

Ouça a matériaA-normalA+Um dia, o falecido Umberto Eco falou de santo Agostinho, da ribâ (usura), de são Bernardo, de são Gregório, das indulgências dos Fuggers, do banco Médici, que fez fortuna com o dinheiro do papa, dos comerciantes que compravam especiarias por dez ducados no Oriente e as vendiam por 300 florins na Europa, colocando em risco a própria vida.  

Depois, voltou ao caminho sagrado do Fórum Romano, às moedas de Delfos, à confiança no papel-moeda Tang. Era impossível descer do seu voo de águia que deslizava sobre Baghdad, Samarcanda, Potosí, Tombuctu, Macau, para alcançar Babilônia e Nova York, sobre os mercadores de Amsterdã e de Veneza, e observava as caravanas de Khotan, os comerciantes dos caribenhos pré-colombianos, os navegantes portugueses.  

Mais tarde, em Berkeley, ouvimos sobre canhões, navios à vela, saúde pública na antiga Florença, transferências de tecnologia do mundo árabe para a Europa. E, ainda, sobre egoísmo, sede incensurável de ganhos e, também, estupidez e ignorância humana sem limites. 

As matérias-primas influenciaram toda a história da humanidade e continuam a desempenhar um papel central no equilíbrio entre continentes. O Brasil nasceu desse interesse, que permeia uma humanidade querendo mais do que o comum. 

Há séculos era pimenta, hoje é energia; no futuro talvez sejam lítio, germânio, nióbio, grafeno e outros metais de nomenclatura mitológica. 

As matérias-primas provocaram guerras, trouxeram a paz, estimularam expedições, operações de espionagem, intrigas sangrentas, estabeleceram acordos soturnos entre países e até inimigos.  

Ouro, prata, especiarias, cereais, cobre, ferro e carvão, mas também sal e seda, café e cacau, mercúrio e diamantes e, ainda, lã contribuíram para escrever a história. Para enriquecer alguns homens, quebraram outros; para fazer fortuna, lançaram outros no abismo e na morte, como os escravos africanos e os trabalhadores da primeira Revolução Industrial. 

A bênção inicial das matérias-primas representou quase sempre para os países que as possuem uma maldição cruel, com violência, disputas e guerras.  

O dinheiro, caindo do céu como maná, inoculou veneno em sociedades tribais. A euforia deu espaço à desistência do esforço e à decadência. Essas pequenas grandes histórias ajudaram a moldar a história e a oferecer prazeres diários... mas ao preço de muitos sacrifícios, dores, sofrimentos, incertezas e dúvidas. Quando falamos de matérias-primas, pensamos automaticamente em ouro, prata, ferro, cobre, cereais, petróleo, madeira. No entanto, a lista é muito mais longa, que se modificou para conveniência dos homens, valorizando-se algumas numa vertiginosa escalada de preços. 

Livros do século XVII sem qualquer fundamento confiável enalteciam as mercadorias que chegavam do Oriente e geravam lucros inimagináveis aos importadores, numa época em que os autores sequer conheciam os limites de seu país. 

É preciso um grande esforço de imaginação para se colocar no lugar dos romanos, que descobriram a pimenta e a seda, dos médios-orientais que admiraram o âmbar do mar Báltico e o papel de Talas ou das esposas do imperador chinês que, na Cidade Proibida, recebiam corais de presente. 

No mundo ocidental, durante muito tempo, a seda foi considerada uma fruta que crescia em uma árvore. Foi a imperatriz bizantina Teodora (500-548) quem descobriu a técnica de produção chinesa, protegida pela pena de morte infligida a quem revelasse os seus segredos... Os chineses, também, tentaram proteger o método de produção do papel, mas, após a batalha do rio Talas (751), entre o exército da dinastia Tang e soldados muçulmanos, alguns prisioneiros chineses que trabalhavam nas fábricas de papel revelaram as técnicas de produção em troca da promessa de liberdade ou para pôr fim às torturas a que foram submetidos.  

A indústria papeleira desenvolveu-se em Samarcanda, depois em Bagdá e, depois, mudou-se para a Espanha, para Xàtiva, de onde passou para a Itália, para Fabriano, cidade que durante dois séculos seria a maior produtora de papel da Europa.  

O Brasil se tornou o maior produtor mundial de café após múltiplas tentativas, enfim bem-sucedidas, de se apropriar das plantas, e Pierre Poivre  (Pimenta, traduzido do francês) conseguiu roubar as plantas de diversas especiarias para semeá-las nas terras tropicais sob controle francês.  

Na Indonésia, onde é produzida a noz-moscada, trabalhadores e engenheiros tentaram ser contratados nos estaleiros para se apropriarem das técnicas e da madeira usada na construção dos navios de guerra. Até o urucum caribenho, de coloração muito intensa, moveu corsários a caçá-lo nos galeões espanhóis carregados de ouro, prata e da sementinha vermelha. Os ingleses, após a primeira guerra do ópio, roubaram plantas de chá na China para semeá-las na Índia e enfraquecer o monopólio chinês. 

Mesmo que a relevância das tecnologias esteja alcançando níveis fantásticos, as matérias-primas mantêm seu fascínio e importância. 

Este texto se inspira em um de Alessandro Giraudo, fantástico escritor italiano.