Passei alguns dias na Itália, em Vicofertile, durante o mês de setembro. Isso me deu meio de recompor e resgatar sentimentos e lembranças da minha juventude e da minha formação. Reencontrei a casa de meu bisavô Vincenzo totalmente restaurada; permanecem os tijolos e as pedras das paredes erguidas em 1908, exatamente no ano em que nasceu meu pai, filho de Francesco, primeiro filho de Vincenzo. Entre esses muros nasceram, cresceram e morreram os meus mais diretos antepassados.
Nesse local se encontram impregnadas as vibrações de felicidade e dor, de momentos de alegria e outros de tristeza, de derrotas e vitórias, de nascimentos e falecimentos, de muita vida que passou por aqui e se irradiou para o mundo inteiro. Entre os inúmeros descendentes de Vincenzo, muitos hoje estão presentes no Chile, no Canadá, na Austrália, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Brasil. Suas sementes voaram longe.
A poucos metros da residência de Vincenzo, falecido em 1920, caiu uma bomba, em 1944, lançada por um avião. Ela abriu uma cratera de 50 m de diâmetro e 4 m de profundidade, que ninguém até hoje se preocupou em nivelar. Mais adiante, algumas centenas de metros depois, existe um recém-descoberto sítio arqueológico, com vestígios de 5.000 anos antes de Cristo, além de restos de um culto à deusa Mãe Terra. Lembrei-me também das marcas de balas de fuzil na fachada, disparadas em algum confronto.
Em Collechio, distrito de Parma, que fica a 4 km, se deu talvez a última tentativa de barrar o avanço das tropas aliadas em 1945, que contavam, além de americanos, com um contingente de brasileiros, os nossos vitoriosos pracinhas. De sua passagem lembrava-se minha tia, pois havia negros e pardos que eram novidade e chamavam atenção quando ali pediam água para beber.
Essa casa de Vincenzo, a mais espaçosa e equipada da região, nos últimos momentos da Segunda Guerra Mundial, foi tomada à força por oficiais do exército nazista, que nela instalaram seu quartel, obrigando os moradores a se transferirem para a casa dos fundos e dividir com caseiro e empregadas os apertados quartos. Apinhados nesse espaço, passaram os últimos anos da guerra, até o exército libertador colocar os alemães em fuga.
Nela também faleceram crianças levadas pelas pandemias de 1917 e 1920. Febre tifoide e gripe espanhola mataram 3,5 milhões de italianos em quatro anos, cerca de 10% da população daquela época. Se a mesma mortalidade se aplicasse à onda de Covid-19, no Brasil teríamos perdido não 700 mil vidas, mas 20 milhões. Imaginei as angústias e o valor efêmero da existência ligadas por um fio frágil.
Minha avó Maddalena Lualdi, nobre e linda milanesa (da cidade de Milão), deu à luz nessa casa sete filhos antes de falecer, aos 26 anos, em 15 de abril de 1910. Não teve a dor de ver dois deles levados em seguida pelas pandemias.
Pouco distante da casa tem um minúsculo cemitério da paróquia de Lemignano, um micropovoado do Vale Padana. Numa caminhada à tarde encontrei o portão destrancado. Passei, assim, em revista as lápides e encontrei apenas uma de um conhecido, a de Cornélio, que trabalhou com meu pai e sempre passava em casa para dar manutenção nas torneiras. Mas, saindo, deparei-me com uma lápide fixada no muro da cerca - pequena, de mármore branco, com o nome Emilia Medioli esculpido.
Nunca tinha ouvido falar dela, nem de parentes enterrados nesse cemitério. Na lápide não são citados os nomes dos pais, apenas a data do falecimento, em 1917, com a idade de 8 anos - época da pandemia de febre tifoide. Mesmo ano do falecimento de minha tia Vittorina. Dela herdei o nome de Vittorio, pois meu pai, Riccardo, tinha por Vittorina, irmã mais velha, uma consideração de mãe, devido a ter ficado órfão com apenas 1 ano de idade e ter sido “criado” por Vittorina, que assumiu papel de mãe.
Assim, a foto de Vittorina, quando eu era ainda menino, ficava exposta em moldura dourada no quarto de meu pai junto com aquela da vovó Maddalena, separadas por um relógio de pêndulo, que tocava todas as horas e meias horas do dia. Lembranças da dupla orfandade de meu pai.
Na parede do cemitério de Lemignano, ao lado da lápide de Emilia falecida em 1917, encontrei outra com o mesmo nome e sobrenome: Emilia Medioli, falecida em 1920, completando 2 anos de idade. Apenas duas lápides e o mesmo nome compartilhado por duas meninas, levadas com 8 e 2 anos. Naquela época, era muito comum aproveitar o nome de um falecido para perpetuá-lo em recém-nascido. Emilia, segunda nascida um ano depois da primeira Emilia, foi levada pela segunda pandemia.
Fica aí um registro que não é apenas de duas vidas esquecidas, mas de uma história que deixamos perdida nas brumas passadas.