RECONHECER A UTILIDADE DE TUDO

Dolcezza

Na velhice os dias adquirem valor, se tornam escassos, se descobre sua preciosidade

Por Vittorio Medioli

Publicado em 26 de outubro de 2025 | 13:31

 
 
Nos jovens a visão está ofuscada pelos reflexos intensos do sol meridiano Nos jovens a visão está ofuscada pelos reflexos intensos do sol meridiano Foto: Pixabay
Vittorio Medioli
Colunista de Opinião
Colunista de Opinião
Vittorio Medioli Vittorio Medioli
aspas

Aprendi dos livros de sabedoria que nos jovens a visão está ofuscada pelos reflexos intensos do sol meridiano. Não se consegue distinguir um diamante de um caco de vidro, o ouro de um latão. É preciso aguardar as luzes do tramonto, tênues e filtradas, para apreciar a diversidade das cores, para ver os animais saírem da floresta, para respirar um ar mais fresco quando a natureza se prepara para a noite.

Eu não sou exceção, me refinei modestamente ao longo da vida, estou sentindo o “dulcis in fundo”. Creio que, enquanto se prolongarem essas oportunidades, a cada dia reconhecerei mais detalhes surpreendentes na infinitude que não se imaginavam atrás daqueles reflexos do meio-dia. Nem sempre são detalhes agradáveis, mas são sempre reveladores. Quando se atenuam os desejos, a consciência permite compreender, aceitar e, acima de tudo, reconhecer a utilidade de tudo, do bem e do mal.

É preciso se preparar para não sofrer decepções. No tramonto aparecem verdades e outra realidade. A consciência se dilata. Aquilo que parece ser o bem em conflito com o mal se torna apenas a linguagem do mundo dos homens, em que vivemos para amadurecer. Dores inconsoláveis, derrotas amargas, infortúnios graves, doenças perturbadoras, quando o sol se pousa no horizonte, descobrimos que eram para corrigir e evoluir. Foram o nosso bem real, e não atos hostis numa dimensão em que a eternidade não tem pressa.

Os sufistas, místicos do islã, dizem que o homem é uma máquina. Vive e morre num estado de dormência, se comporta, se alimenta como uma máquina inconsciente. Raineesh, ainda, pondera que o homem é um robô, que não tem consciência, que em poucas horas se esquece de tudo, que se lembra apenas de rotinas e reações mecânicas, que servem para atuar mecanicamente. Não vive intensamente, transita do nascimento à morte com raros vislumbres de consciência plena.

George Gurdjieff, com fama de mago, na primeira parte do século passado, pautou a sociedade intelectual com essa ideia sufista. Quase todos os homens chegam à morte sem nunca ter saído verdadeiramente do estado de sonâmbulo. Desperta plenamente em raros momentos, como quando sob forte ameaça, como seria com um revólver encostado na sua cabeça. Passa assim numa vibração elevadíssima no momento de perder a vida. Se a bala não o matar, passa a ter noção da real importância da vida que estava transcorrendo num estado de dormência.

A percepção real da vida se acende quando aparece a não vida. É preciso um oposto impactante para despertar a importância de outro. Tudo que sacode o ser íntimo permanece. Um raio de amor intenso torna uma lembrança eterna. Mas o mais comum acontece porque o homem é perfeitamente hábil e capacitado a fazer suas coisas mecanicamente.

É suficiente ficar à beira da via e observar as pessoas passando, para ver que aí passam pessoas em estado de sonambulismo. Andam, mas com a consciência apagada, a maioria parecem robôs programados. Seus olhos não brilham. Não brilham como os do condenado à véspera da execução, quando luta por mais um dia, depois de ter passado a existência sem dar valor a nenhum dos milhares de seus dias.

Na velhice os dias adquirem valor, se tornam escassos, se descobre sua preciosidade. Levantar-se mais cedo para viver momentos que as mãos não podem reter. Se todo o cascalho fosse de diamante, o diamante não seria valioso. A perda valoriza a vida, até uma batata assada com sal e azeite se tornam iguaria depois da fome. As formalidades, as vaidades de uma vida inteira ficam inconcebíveis. Roupas, joias, luxos podem ser trocados por um gesto de carinho, por momentos de paz, pela inocência de um cachorrinho que faz festa como se enxergasse no seu dono a maior celebridade do planeta.

Passa a ser mais agradável um ser humano, mesmo o mais humilde, desde que sincero. Melhor ele que um presidente, que um ator se fingindo de santo. O máximo se torna uma criança que quer descansar no seu ombro, explodindo de amor inocente. Sem uma só palavra, com sua “dolcezza”, ela desperta sua consciência, explica o que é a vida, e, se prestar atenção, sentirá se acender uma energia sublime que dormia em você.