OPINIÃO

A miséria do narcossistema

'Ter pena de quem ganha e às vezes fica bilionário, e colocar a culpa em quem perde até a vida e desgraça famílias inocentes, parece um exagero despropositado'

Por Vittorio Medioli


Publicado em 09 de novembro de 2025 | 15:08
 
 
Operação policial nos complexos do Alemão e da Penha

A sociedade humana é um conjunto de órgãos ligados entre si, compõe-se de agrupamentos de famílias, de etnias, de nações mais ou menos distantes e interdependentes. Quem as vê separadas e desvinculadas não tem a noção exata das ligações sutis e indissolúveis existentes neste planeta.

Segundo um ensinamento zen, uma folha que cai na floresta da Ásia tem o poder de mudar o planeta inteiro. Algo sempre muda, como uma gota a mais num balde, numa represa ou no oceano tem esse poder infinitesimal.

Um exame de sangue precisa de apenas uma gota para detectar a qualidade de milhões de outras que transitam pelas veias de um indivíduo. Assim como uma injeção de poucas gotas num músculo tem o poder de curar ou até de matar um homem, num efeito multiplicador quase instantâneo.

Na sociedade e nas nações – conjuntos mais estreitos ou mais amplos –, as relações ocorrem como num corpo humano. Digo isso para iniciar algumas considerações que de regra fogem à percepção quando se apreciam ou se analisam fenômenos sociais, econômicos e políticos.

A sociedade é um órgão único de interdependências mais diretas, proporcionalmente à proximidade e aos subgrupos, entretanto a distância não exime de consequências mais imediatas ou tardias, igualmente letais.

Nos últimos dias, o presidente Lula externou sentimentos contrários aos da maior parte da população, que levantaram críticas ácidas. Não bastasse definir “os traficantes como vítimas dos usuários”, depois de cinco dias aprofundado no silêncio, que certamente não é seu hábito, classificou a operação Contenção, no Rio de Janeiro, do dia 28 de outubro, que deixou 121 mortos, como uma “matança”, sem nenhum elogio aos policiais, condolências às viúvas e aos órfãos no cumprimento de uma missão arriscada, que custou a vida, na tentativa de recuperação de milhares de famílias exploradas, fora da lei, pelo Comando Vermelho.

A facção carioca do narcotráfico se vale do terror para subjugar territórios e milhares de indivíduos, valendo-se da tortura, da morte, das drogas, com o objetivo de controlar uma população indefesa e obter, assim, ganhos bilionários. Esse retrato é incontestável.

Nesses dias de estupor apareceram vídeos, postados pelo próprio CV, de torturas e mortes atrozes, de quadrilhas fortemente armadas recebendo com bombas e balas os policiais. Há ainda imagens de um jovem arrastado em alta velocidade pelas vias da favela, outro executado a pauladas na cabeça, revelando extrema crueldade, o aparecimento de poços-cemitério, onde sumiram dezenas de vítimas culpadas de não se curvarem aos desmandos dos chefes da facção.

Contudo, atrás das palavras do presidente, apesar de ele não ter discernimento dessas ligações, existem problemas que se agigantam pela omissão da sociedade; talvez se inspirasse exageradamente nisso ao proferir um desvario.

Dizer que o traficante é vítima do usuário revela uma ligação social que de fato existe. A pertinência da mesma sociedade urbana é real, considerando a cidade um sistema de órgãos interdependentes. O CV pode ser um tumor que nasceu num pulmão não por desejo do pulmão, mas pelo vício que gera uma aparente satisfação e dependência do corpo todo. É, assim, sacrificado o pulmão pela decisão do conjunto; o pulmão leva à falência o corpo inteiro.

Sem usuário não haverá traficante, e vice-versa. O traficante com perfil de analfabeto funcional e desempregado contumaz ganha com a venda de droga, o usuário apenas se empobrece, deteriora a saúde e morre precocemente. Ter pena de quem ganha e às vezes fica bilionário, e colocar a culpa em quem perde até a vida e desgraça famílias inocentes, parece um exagero despropositado.

Mas o fenômeno da pobreza e miséria que afeta grande parte da sociedade brasileira e dá origem aos aglomerados – ambiente fecundo de situações degradantes – é, sem dúvida, consequência de uma nação que por omissão e irresponsabilidade não se interessou e marginalizou, dessa forma, uma parcela dela mesma.

Que interesse tem um presidente em fazer tais afirmações? Só ele pode responder. Mas são relevantes a postura de defesa dos traficantes e o menosprezo às vítimas, numa relação desigual, em que se reduz a questão ao problema de uns contra os outros, de ricos contra pobres – discursos que já não são tão aclamados como antigamente.

Deveria questionar-se também a escalada das ajudas sociais públicas, em grande parcela geradas e determinadas pelo interesse político-eleitoreiro, que mais vicia e não pretende estruturar uma transição social virtuosa, dando autonomia e liberdade ao cidadão.

Mais impostos para mais ajudas destinadas à reeleição, e não impostos para financiar o desenvolvimento orgânico da sociedade.
Garantir a permanência do status quo de miséria e ignorância, a reeleição pelas vias mais tóxicas de manutenção de currais eleitorais, cuja extinção mudaria o perfil do poder, ainda é modelo vigente em consolidação.

Essa dependência dos políticos em relação a currais precisa perpetuar a miséria e a ignorância, ocultadas por ideologias e escolas partidárias, não necessariamente de esquerda, já que convergem esquerdas e coronéis do cangaço.

Os horrores de uma sociedade em guerra revelam as divisões internas e as forças eleitorais em conflito para se manter no poder?
Única certeza: das consequências ninguém escapará.