OPINIÃO

Impiedoso

O juiz deve decidir com isenção, na dúvida, em benefício do réu, resultando em absolvição se não houver prova irrefutável

Por Vittorio Medioli


Publicado em 28 de dezembro de 2025 | 14:51
 
 
Ilustração da execução de Robespierre, no dia 28 de julho de 1794

Segundo Dante Alighieri, quando acontece a “morte in gentil cuore”, um ser humano se torna feroz, triste, malévolo, insensível, amargo, cruel, porém a palavra que mais abrange a transformação é “impiedoso”, alguém que perde a piedade, a compaixão, em seu coração e se torna um problema. A prática de destruir os outros resulta, inapelavelmente, em destruir a si mesmo.

Esse sentimento de transgressão “impiedosa”, contra inocentes, hoje é comum não apenas na instância superior do Judiciário – como nunca em decadência conceitual –, mas também na mídia que assumiu vigorosamente a defesa de condenações sumárias e cruéis. Tornam-se esculpidas “ad aeternum” como violência jurídica e reprodução do terror da época jacobina.

Plutarco defendeu a existências de vidas paralelas e descreveu 23 casos, ligando 46 figuras históricas – descreveu coincidências, afinidades e destinos intrigantes. O mais famoso dos paralelismos ligou o imperador Alexandre Magno a Júlio César. 

Figuras históricas continuam a despertar paralelos e, ainda, incríveis semelhanças físicas. Este é o caso de Maximilien François Marie-Isadore de Robespierre, nascido em 13/12/1758, em Arras, com um atual ministro brasileiro. O francês levou a ferro e fogo a época do “terror”, que determinou cerca de 17 mil execuções pela guilhotina e outras 300 mil prisões com ritos sumários, suposições ideológicas e presunções descabidas.

Robespierre se tornou símbolo de terror, truculento, sem freios e piedade. A ideia de uma limpeza ideológica levou aristocratas, religiosos e até estranhos ao patíbulo, na lógica de instalar o terror “para dominar” a nação. Até a substituição do culto cristão por aquele de um Ser Supremo varreu Jesus Cristo, o clero e deixou Robespierre como líder de uma religião exterminadora.

Nos momentos de exceção se usou a intolerância para extirpar, sem contraditório, figuras e ideias divergentes. Aboliram-se os direitos à convivência civilizada. Anulou-se, como agora, a garantia “in dubio pro reo” (“na dúvida, a favor do réu”). Princípio atemporal e fundamental de direito penal, que estabelece a inocência se houver dúvida razoável sobre a culpa de um acusado. O juiz deve decidir com isenção, na dúvida, em benefício do réu, resultando em absolvição se não houver prova irrefutável. Não bastam suspeitas, deve ter prova da existência do crime e da autoria de forma incontestável.

É um pilar do direito penal brasileiro o art. 5°, LVII da Constituição Federal, implicitamente previsto no Código de Processo Penal, no art. 386, VII (absolvição por falta de prova suficiente para condenação).

Outro princípio, que não pode ser confundido com o anterior: “in dubio pro societate”, ou seja, “na dúvida, a favor da sociedade”, e não do réu. Mas isso se aplica na fase de investigação (inquérito policial) para analisar se há elementos para iniciar o processo de indiciamento. Entretanto, não deve ceder lugar ao “in dubio pro reo” no julgamento final.

Declarações dos próprios investigadores envolvidos mostram que, nas instâncias judiciárias, havia um laboratório para transformar precipitadamente indícios em provas, e uma legião de militantes ideológicos e jornalistas fabricou provas de crimes contra o “Estado democrático de direito” – um simulacro inqualificável de democracia.

Os atos do 8/1 na Praça dos Três Poderes são posteriores à saída do ex-presidente do comando. Constam mais como reação popular a um processo que deixou 49,8% dos eleitores derrotados. A transmissão da faixa ao novo eleito, ocorrida em 1°/1, encerrou expectativas de golpe, acalentadas de diversas formas, já que as rédeas do poder e toda a força de segurança já estavam com o adversário. Diga-se, interessado em desmobilizar as manifestações contrárias à sua vitória.

Teria o ex-presidente aguardado perder as prerrogativas constitucionais, o comando do Exército, do qual era “chefe supremo”, para atacar os adversários, que estavam com todos os poderes em suas mãos? Tese fantástica, aliás, a transferência do poder se ergue mais como prova de inocência consumada?

Pode ser plausível e real um comandante sitiado numa fortaleza com todos os canhões a seu dispor, todo o arsenal, sair dela para o sereno, de mãos abanando, transferir pacificamente ao adversário todo o poderio bélico para depois tentar um golpe?

Os vandalismos foram vários e não esclarecidos, a não ser aquele do batom, com uma condenação “impiedosa” a 14 anos de prisão de uma jovem mãe. Ainda, o ministro da Justiça se tornou ministro do STF para julgar atos que o têm como vítima em 8/1? 

A reação da mídia dos últimos dias, aquela mídia que justificou o temerário, está retornando a posições objetivas, agora atacando quem era pontificado. Partiu-se (Malu Gaspar) de uma denúncia de verdade, R$ 3,6 milhões mensais, já recebidas 22 mensalidades pela esposa do ministro.

Mostra-se que o “impiedoso” tem duplo sentido, tanto contra como a favor, tanto para receber como para condenar. O tempo, contudo, leva fatalmente o rio de volta a seu leito.

Robespierre foi condenado sumariamente pelos seus pares, que não o toleravam mais, e foi executado na guilhotina em 28 de julho de 1794. Encerrou-se assim a época dita do “terror”.