No fim do século XVI, ciente de que nada lhe poderia ser tirado, plenamente consciente da inviolabilidade de seu patrimônio espiritual, frequentador de mundos impalpáveis, o frei excomungado Giordano Bruno enfrentava as torturas nos porões do Vaticano sem um só gemido, sem uma única queixa. O corpo dele parecia anestesiado, como se não lhe pertencesse, e seus olhos imperturbáveis se enchiam de um estado de graça, de uma luz fulgurante. Uma afronta para os inquisidores e uma razão a mais para acusá-lo de heresias e de cumplicidade com o demônio e para condená-lo a arder no fogo.
Bruno no final da vida exercia, como um faquir, o domínio do seu corpo físico, não “resistia ao mal”, conseguia anular as sensações e os desejos. Dominava, imperturbável, o êxtase provocado pelo amor dirigido a qualquer coisa, até aos torturadores – sem preocupação de perdas e de ganhos. Conseguia ser imune ao medo do tempo, alcançava o estado que o hinduísmo e a yoga definem como samadhi – um estado de graça plena, de unidade com o “Deus que não tem nome e, todavia, tem todos os nomes”.
Uma condição de espírito e inspiração que eu não consigo deter ou controlar, que às vezes me toca como eco quando a voz angelical de uma cantora oriental me acalma, quando aromas que passo na madeira da mesa me trazem alegria, quando um suco de maracujá me relaxa, quando sem apegos procuro silenciar preocupações e soltar sentimentos de misericórdia. O insight dura uma fração indefinível de algo atemporal e mudo, que não tem palavras que o expliquem.
Giordano Bruno tinha se livrado de qualquer preocupação de “ter”; compreendia no íntimo que “ter” era “ter preocupações”; ao contrário, “ser”, não por orgulho ou vaidade, era “ser” náufrago de um oceano de beatitude. Para o místico acusado de heresia, o corpo acorrentado à mesa de suplícios importava como a casca do ovo importa para a águia que abre voo em céus límpidos e enxerga paisagens majestosas, em que não se distingue a divisão de bem e de mal, apenas um quadro de irretocável justiça.
A essa condição de sublimação e de elevação moral Bruno chegou no fim de uma vida irrequieta, dedicada ao estudo, à meditação, à disciplina, alternando momentos de descontrole a outros de visões sublimes, que o fizeram capaz de confessar: “Entre as deusas, a que prefiro é Minerva, ela é Sofia, a própria Sabedoria; bela como a Lua, grande como o Sol, terrível como as disciplinadas fileiras de um exército... poderosa porque, sendo uma, tudo pode fazer... bondosa por tornar os homens profetas e amigos de Deus”.
“A ela eu tenho amado, buscado e desejado por esposa... e roguei... que a enviassem para habitar comigo e comigo trabalhar, a fim de que eu pudesse saber o que me faltava e o que seria aceitável a Deus...”.
Bruno acabou queimado em Roma, antes do alvorecer de 17 de fevereiro de 1600, por ter ousado penetrar regiões que dividem a religião da magia, da ciência, da arte e da poesia. Principalmente por ter procurado compreender, sem limite de ousadia e de medo, a razão primordial da vida, razão que encontrou ao se despedir dela; sem explicá-la, mas mostrando que era possível encontrá-la.