OPINIÃO

Vida no cemitério

Por Vittorio Medioli

Publicado em 21 de setembro de 2025 | 15:32

 
 
Foto ilustrativa Foto ilustrativa Foto: eugene barmin
Vittorio Medioli
Colunista de Opinião
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Retornei à Itália depois de nove anos de ausência. Encontrei os lugares onde fui criado, educado, onde recebi dos meus pais e parentes os princípios fundamentais e os estímulos que me conduziram em 74 anos de existência. Fiz questão de passar no cemitério de Valera, próximo da cidade de Parma, onde se encontram os restos mortais de seis gerações de familiares, do início de 1800 até hoje. Os antepassados dos 200 anos anteriores acabaram se perdendo com o fim de um pequeno cemitério em Vicofertile, que atrapalhava o crescimento do vilarejo e que, por isso, foi demolido depois que se juntaram os restos de todos os mortos numa grande urna, tornando-se, assim, um singelo mausoléu.

Caminhando em frente às lápides, relembrei os passos também da minha vida. Em estado de desprendimento e paz, acabei por ser fulgurado por uma síntese de sentimentos antigos filtrados na quietude de minha alma surrada.

No lugar da emoção, insegurança, temor de outros tempos, me tomou com intensidade uma grande alegria. Chegou como um raio e me trouxe uma rara sensação de aceitação e gratidão. Não havia bem ou mal, dívidas ou créditos, sentimento agradável ou desagradável, afinal tudo que se passou serviu. Senti ser justo, incontestavelmente necessário. O sol da simples gratidão iluminou as sombras. Nesse momento fora do tempo percebi que os sentimentos viajam mais velozes e precisos que aviões. Chegam aos interessados e deles retornam.

Recebi de imediato respostas numa única onda proveniente do universo, acompanhada de sorrisos, abraços, como nunca tinha experimentado naquele cemitério “incômodo”, que sempre me deu aflição.

Chegando, tive que me lembrar do arrasador pesar ao enterrar meu pai, há 43 anos, com centenas de familiares e amigos que ele mereceu numa vida feita de pequenas coisas. Eu carrego uma lembrança de lágrimas incontroláveis no estreito recinto do cemitério da minha terra natal, quando, num dia de setembro de 1982, senti ter perdido a oportunidade de ter dado a meu pai mais um pouco do que merecia. 

Ontem senti subir pelas pernas e tomar conta de mim o mesmo impulso avassalador, desta vez de prazer, de amor libertador, que se instalou no meu peito, batendo bem forte. Perdi o medo da morte. 

Alguém sussurrava: “A felicidade deve ser silenciosa como uma brisa fresca da manhã”. Preciosa por si mesma. 

Saí de lá feliz, apaguei minhas dívidas, me pacifiquei com todos e com o mundo inteiro. 

Perdoei. Fui perdoado. Livrei-me dos entulhos. 

A vida inteira me sorriu, talvez muito mais que a todos aqueles cujos restos aí se encontram. Devo me considerar uma síntese daquela insensata mescla de DNA e milhões de experiências, refinadas entre desacertos e acertos, dores e felicidades, pequenezas e grandezas de milhares de vidas.

Aquela legião de familiares entrelaçados por amores e provações, enterrados naquele recinto, me deu fibra, substância, exemplos, sonhos para transitar por tantos lugares inimagináveis, quando fechei minha mala para viajar para longe.

Naquelas fotos desbotadas de familiares, fixadas nas lápides brancas, estão meus traços, meus defeitos, meu sangue, minha imensa gratidão.

Segui, ontem, sem mágoas, leve. As cicatrizes se apagaram, parecia-me ter reconquistado a inocência de uma criança que esquece tudo e continua o jogo.