REFLEXÃO

Pela janela entreaberta

Entre o 'fioretto' e o copo d'água jogado da janela entreaberta, a infância era a nossa indulgência plenária.

Por Vittorio Medioli

Publicado em 28 de setembro de 2025 | 14:19

 
 
A observação pela janela traz um mundo fascinante A observação pela janela traz um mundo fascinante Foto: Divulgação/Pixabay
Vittorio Medioli
Colunista de Opinião
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Na realidade maniqueísta, atraído pelo mal e devotado ao bem, fiquei convencido de que eu era, segundo os ensinamentos recebidos nas aulas de catequese, um arrolado do bem, diuturnamente à disposição dele. O clássico mocinho.

No mês de maio da minha infância – hiato do calendário dedicado a Maria, Nossa Senhora – colocavam no meu fino pescoço um colar de contas corrediças. Cada pedra corrida representava um “fioretto”, em português, uma boa ação ou uma ação em penitência que eu, imberbe broto como era, podia cumprir durante meu dia.

À noite, antes de me deitar, contava o total de “fioretti” do dia e anotava no diário escolar – fiscalizado semanalmente pelo mestre/professor e contabilizado num ranking dos membros da minha turma.

Sem ter o que fazer de especial para acrescentar contas à lista de minhas boas ações, como seria deixar a cadeira para um ancião, ajudar um cego a atravessar a rua, colher do chão as moedas perdidas por alguém e entregá-las na caixinha da igreja e, ainda, dar preferência a uma grávida na entrada do ônibus e tirar sujeira em qualquer lugar por que passasse, para acrescentar méritos ao meu patrimônio de bondades, comecei a me imaginar assediado pelo mal para controlá-lo e deixá-lo de lado, conquistando, assim, uma conta. Nesse exercício virtualmente barato eu vencia o mal que eu mesmo inventava. Tirava do chão as cascas que jogava pela frente, num mundo intimamente meu. Vencer o desejo maléfico permitia, segundo meu frágil código, escorrer mais uma conta, mais um “fioretto”.

Como informou o reitor da escola, de batina preta, na cripta do colégio no Vicolo Scutellari, em 30 de abril, era aberta para o mês de maio a fantástica indulgência do santo padre e sumo pontífice, sacramentada “urbi et orbi”, pelos “fioretti” de maio. Com a bênção do pontífice teríamos um desconto na estada penitencial do purgatório se a ele fôssemos condenados. A indulgência não teria validade para o inferno; quem a ele fosse condenado perderia qualquer esperança.

Recebi pelo reitor garantias de que São Pedro, instado pela decisão papal, aliviaria minha permanência no purgatório.

Movido por essas promessas sobrenaturais, eu ficava a entardecer na janela do meu quarto no apartamento em Via del Parmigianino, 4, esquina com Vicolo delle Asse, no segundo andar, em Parma, onde morava minha família nos idos dos anos 1950, e, sem programas televisivos, mesmo em preto e branco, para me distrair, ainda em idade em que não podia sair de casa desacompanhado, espiava da escuridão do meu quarto a passagem dos pedestres e dos veículos, ainda raros naqueles anos do século passado.

Para dar saída às minhas travessuras, em dias de chuva costumava me armar de um copo cheio d’água e acertar as sombrinhas abertas de quem passava pela calçada debaixo da janela. O impacto gerado pelo acerto assustava e acelerava o portador da sombrinha, que, em seguida, quase sempre, olhava para cima à procura de uma explicação do fenômeno, obviamente sem encontrá-la nas nuvens.

Eu, de trás da veneziana, imerso na escuridão do meu quarto, ria até a barriga doer. Dava saída à agressividade acumulada no confinamento de casa.

No mês de maio, em razão dos “fioretti”, trocados por indulgência do papa Pio XII, a cada transeunte poupado deixava correr uma conta, me aliviando do purgatório. E isso se limitava ao mês de maio, já que boas ações em junho não valiam prêmio. Mas ninguém resistia quando já havia um razoável número de contas conquistadas e jogava um copo d’água sobre um transeunte para depois fechar de imediato a janela entreaberta e sumir pelo tempo para que as investigações da vítima cessassem.

A habilidade suprema, o golpe de mestre, entre as crianças levadas da minha turma, como uma proeza de Clint Eastwood furando um dólar voando, era atingir com um cuspe, “ad artem”, a careca de um transeunte. Mais difícil que prêmio na loteria. Precisava de um cálculo “científico” e quântico de vento, gravitação, velocidade e muito mais.

Sabia-se perfeitamente que o sucesso daria sequência a punições devastadoras, mas isso era o preço consagrador do herói, o reconhecimento “urbi et orbi” da façanha, que deixaria os companheiros admirados para sempre.

Depois de anos e de tentativas de acertar um careca, entre pecados e “fioretti”, essa fase da vida evaporou. Lembro a inocência e a despreocupação, as risadas, os sonos profundos, com sonhos que pareciam mais reais que a realidade, e a “dolcezza” de uma vida de crianças que acreditam em fadas e Papai Noel.

O meu sonho de infância era ser um soldado do bem, montando um cavalo branco, com uma cruz vermelha no peito e brandindo uma espada de luz. Isso também derreteu como um boneco de neve no pátio do prédio de Via del Parmigianino.

Era eu mesmo, tentando entender as razões de minha chegada a este planeta.

Agora, conformado em ser apenas um ser humano, sem cavalo, sem armadura e espada de luz, sujeito aos erros de qualquer mortal, compreendo que o melhor foi amar e reconhecer limites e falhas como aquelas da criança assistindo ao mundo pela janela entreaberta.