Quando ouvida, a população cita o atendimento à saúde pública como insuficiente, precário e até péssimo. Especialmente as classes de menor renda não têm outra opção àquela oferecida pelos municípios e Estados.
São os carentes que, por menor nível de educação e preparo, acabam mais expostos às doenças decorrentes da insalubridade das moradias, da falta de saneamento básico, do desconhecimento de condições de higiene e de risco e, ainda, da alimentação desregrada, da dependência de drogas lícitas e ilícitas. Estas são as principais causas que alongam as filas de milhões de indivíduos à procura de atendimento.
Pesa também o aumento da expectativa de vida, que alcançou recentemente os 77 anos, gerando um crescimento exponencial de demandas no SUS e, também, de abrigamento de idosos desamparados.
Nestes dias o Ministério da Saúde está elaborando um programa de enfrentamento das longas e intermináveis “filas” que ficam a cargo dos municípios, exatamente no ponto de contato do sistema público com a população. União e Estados escapam do contato direto e, bem por isso, estão “pouco interessados”.
A “terceirização” coloca municípios em situação extremamente exposta e penosa. Dessa forma, o Ministério da Saúde está elaborando planos para aumentar o horário de funcionamento das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) municipais, recorrendo a uma “dobra” do período de funcionamento.
Não mais um turno em horário comercial, mas dois, disponibilizando equipes das 6h às 22h e aos sábados, para consultas e outros atendimentos.
A proposta parece válida em teoria, entretanto resta ver, na prática, até que ponto será encontrada mão de obra especializada (atualmente já escassa) para tanto.
Por uma experiência direta, como prefeito de uma cidade de meio milhão de habitantes, tenho notado uma crônica “falta de médicos” nas UBSs e nas UPAs, que encontrei ao assumir meu primeiro mandato.
A frase “Não temos pessoal suficiente”, que era citada e repetida como um mantra em todas as discussões, não mostrava bem a causa real, mas apenas a aparente. Mas esta era a conclusão que foi colocada, pedindo-me para ampliar as contratações.
Saindo para vistoriar os locais (as UBSs), encontrei velhas casas alugadas que não atendiam sequer metade das condições sanitárias preconizadas para cumprir suas obrigações. Dessa forma, os esforços eram frustrados, e os atendimentos, “negados”. O tempo perdido era superior ao empregado para dar resposta efetiva à demanda.
A primeira proposta que recebi tratava de aumentar os “médicos de família” de 114 para 150. Antes de decidir e depois negar o pedido, visitei as UBSs do município e encontrei uma situação vergonhosa das instalações de saúde municipais.
Aquela era a herança de décadas de descaso, de abandono e de omissão, condenando a população usuária das UBSs, das UPAs e das maternidades, todas construídas a esmo e sem projetos sanitários aprovados.
Construções eleitoreiras vendidas demagogicamente como soluções que, na realidade, não permitiam atender a demanda. “O dever constitucional” de prestar um bom atendimento de saúde não chegava a ser atendido, e os últimos prefeitos acabaram sepultados nas tentativas eleitorais pelo fracasso na área de saúde.
Mais de 78% da população indicava sua revolta e impossibilidade de votar nos últimos gestores justamente por terem fracassado estrondosamente na tentativa de solucionar os problemas crônicos no setor de saúde.
Com tantos recursos que passaram pelo município, não se encontrou aquilo que era imprescindível para atender a demanda na área. Não existiam almoxarifados, estoques de insumos e medicamentos, locais adequados e conforme as regras sanitárias de atendimento. Não havia sequer equipamentos básicos e até de pouco custo para atender demandas dramáticas.
Muita gente sofreu e até morreu pelo descaso no planejamento e na aplicação dos recursos, num contexto em que abundam denúncias de peculato, corrupção, desvios monumentais, literalmente ignorados por quem tem o dever de perseguir os infratores e recuperar os recursos desviados.
Os ambientes, mais do que cuidar das pessoas, eram laboratórios de contaminação e propagação de doenças.
Assim, realizado um diagnóstico e identificadas as “causas”, descobriu-se a construção de um novo sistema. Iniciou-se pela construção de equipamentos em formato, dimensões e qualidades imprescindíveis ao funcionamento. Fazendo-se um paradoxal exemplo, era como ter que transportar milhares de toneladas usando mototáxis, e não caminhões pesados, resultando em desastre.
Mais do que de mototáxis, precisava-se de caminhões adequados aos pesos e à segurança dos serviços prestados. Afloraram dados espantosos, que encobriam com lençol curto – e agravavam tristemente – o sofrimento dos usuários.
Nos consultórios em corredores de velhas casas mofadas e decrépitas ou, ainda, nas UPAs (unidades de urgência e emergência 24 horas) com menos da metade do mínimo necessário de espaço, de leitos, de salas, sem adequações sanitárias (condenadas pela Justiça a serem desativadas e substituídas há mais de dez anos), não havia, nem por milagre, como os servidores atenderem os pacientes nem em número, nem minimamente em qualidade suficiente.
O principal desafio da saúde básica nacional está na absoluta inadequação de suas instalações.
Os governos, tanto o federal quanto os estaduais, são verdadeiros avestruzes enterrando suas cabeças na areia para não reconhecer o drama nacional; pior, terceirizado-o aos municípios, que, por ignorância ou por pressão, em face de o setor de saúde ser o que mais pesa numa eleição municipal, acabam se comprometendo como salvadores da saúde, mas desconhecendo as fórmulas corretas de enfrentar a questão.
Não há como ter atendimentos eficientes e econômicos em ambiente malprojetados, malconstruídos (também a corrupção em obras públicas é outro fator devastador) e, pior, fazendo da saúde moeda de troca eleitoral com incapacitados moral e profissionalmente.
Os problemas se entrechocam e se amplificam. Fazem com que casinhas decrépitas em decomposição, de menos de 100 m² de área construída, sejam improvisadas toscamente para serviços que exigem um mínimo de 360 m². Ou uma UPA de 900 m² no lugar de uma eficiente, que deveria ocupar ao menos 2.000 m².
Assim, naquele dramático momento, partimos para construir 25 novas UBSs, todas com farmácia, consultórios odontológico, ginecológico e ao menos quatro de atendimento geral. Salas de vacinação e de coleta de materiais para exames, descarte de infectáveis, dotadas de uma dezena de computadores para cadastrar e acompanhar pacientes. Também já foram substituídas duas UPAs “em frangalhos” por outras de 2.000 m² (e a terceira está em construção), duas maternidades problemáticas por uma moderna, com 170 leitos (até com heliponto), que já realiza o dobro de partos, tendo passado de 3.400 para 6.200 ao ano, com qualidade infinitamente superior.
Toda a rede física de UBSs, UPAs e maternidade foi realizada rapidamente com recursos integralmente de contrapartidas privadas, aprovadas pela Câmara dos Vereadores, por valores muito inferiores aos que eram previstos.
Não foi necessário aumentar médicos nem equipes, que já eram adequados aos habitantes atendidos. Bastou dar a eles condições, ambiente e insumos que são previstos nas normas sanitárias em vigor.
Em muitas unidades, já depois das 10h, não se encontram filas, não faltam medicamentos, vacinas, e as equipes de profissionais conseguem fazer um bom atendimento domiciliar, especialmente com pacientes sem mobilidade.
Hoje, existe o desafio de zerar as filas de cirurgias e consultas especializadas. Em todo o país, milhões de pessoas aguardam por sua vez.
Em Betim decidimos descentralizar parte das consultas especializadas, criamos um centro de especialidades da mulher e da criança e escolhemos usar as melhores UBSs também para atendimento especializado em regime de marcação regional.
Nosso planejamento aponta zerar e normalizar as piores filas até março de 2024, mas a maioria até o final de 2023.
Permito-me compartilhar essas experiências para tentar contribuir para o alcance de soluções, que afetam, neste momento, a maioria dos municípios e milhões de brasileiros em condições assombrosas.