Opinião

O regresso

Para muitos, a motivação de toda uma vida é exclusivamente se enriquecer materialmente, e, já que não sabem nem mesmo gastar os resultados de suas atividades para o bem da sociedade, acumulam dinheiro para os herdeiros

Por Vittorio Medioli

Publicado em 05 de março de 2023 | 03:00

 
 
Vittorio Medioli
Colunista de Opinião
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Tem gente que vive 80 anos ou mais e não sabe responder a si mesmo o que vale uma vida humana. De onde viemos, o que fazemos e para onde seguiremos... A “Odisseia”, de Homero, representa, metaforicamente, as etapas e provações de um homem e os estágios pelos quais ele precisa passar: lutas, guerras e provações. Tudo isso para cumprir com um “dever” e se preparar para a ascensão.

Os antigos sábios não enxergavam na vida “direitos”, como comumente acontece agora, mas “deveres”, obrigações consigo e com a sociedade, não apenas com seus filhos, descendentes e afins. Para muitos, a motivação de toda uma vida é exclusivamente se enriquecer materialmente, e, já que não sabem nem mesmo gastar os resultados de suas atividades para o bem da sociedade, acumulam dinheiro para os herdeiros. 

Raramente quem virá depois deles conseguirá dar continuidade com a mesma vontade e os mesmos sacrifícios, apesar dos registros de filhos que chegam a ultrapassar os resultados de seus pais.

Em sociedades pré-hispânicas, como é o exemplo dos incas, um dos estágios sociais mais elevados da humanidade – como foram também as cidades gregas entre o sétimo e o segundo século antes de Cristo –, preconizava-se uma vida ativa de trabalho e de compromissos até os 49 anos. 

Quando na vida se completavam sete ciclos setenários de existência, passavam a valer outras, e bem diferentes, regras, que, no hinduísmo, chamam-se “Caminho de Saída”. Bem resumidamente, é quando o homem se exercita para satisfazer suas aspirações materiais e seus desejos de todas as ordens. 

A dor do esforço e as múltiplas peripécias não são, entretanto, experimentadas por quem permanece inerte, pois não terá as mesmas oportunidades de avançar. Como o atleta que não se exercita para desenvolver musculatura e habilidade, o homem inerte terá uma estrutura frágil e uma visão prejudicada.

Os enfrentamentos determinados pelo alcance dos desejos representam exercícios. Apesar de não serem muito importantes pelos fins materiais que perseguem, acabam possibilitando um fortalecimento, uma expansão até da consciência, e, por meio das provações, derrotas e vitórias, dilatam a personalidade.

Assim como o aço precisa de vários componentes para se tornar resistente, flexível e inoxidável, os desafios da vida preparam o ser humano para as etapas mais árduas.

O homem inca, aos 49 anos, afastava-se dos deveres, dos trabalhos e se dedicava apenas ao seu lado espiritual, que prevalecia após a morte. Isso, para o hinduísta, é o “Caminho do Regresso”, quando a procura da beatitude pela satisfação dos desejos se transforma em “vontade” de realizar o “bem incondicional” de tudo e da comunidade. Nesse estágio, a sabedoria aprendida se torna “razão”, e o trabalho passa a ser a necessidade de “sacrifício”.

O homem passa, então, a ser movido pela vontade, pela razão e pelo sacrifício, que substituem a beatitude, a sabedoria e o trabalho. Aparentemente, a sabedoria é mais do que razão, mas, nesse estágio avançado, aceita-se o mal como “necessário” à realização do bem, como a dor para fortalecer os músculos do atleta.

O homem, assim, poderosamente iluminado, não vai fazer outra coisa que não o bem, preparando-se para reencontrar quem lhe deu vida. Enquanto o que era pó retornará ao pó.

Conheci a aridez de certos homens e o sofrimento de outros ricos que cansaram de ser ricos, que, no fim de suas vidas, não encontraram a razão de sua labuta e se perguntavam: “Para que serviu tudo isso?”, deparando-se com a cruel realidade de que o capital material não é transferível para outra esfera.

Os grandes mestres de yoga, intérpretes das leis cósmicas e da energia que rege o universo, sustentam que o homem e a mulher fazem parte da unidade de tudo, portanto indestrutível e eterno em seu espírito. A vida, dizem eles, é uma oportunidade de se preparar, esforçar e lutar em causas que se convertam na ampliação da nossa dimensão espiritual. 

Por tudo isso, depois de certa idade, é necessário se preparar para o “Regresso”, com o sentimento de “dever cumprido”. Nisso, a matéria é nitidamente um meio, e não um fim.